Há tempos planejo uma reforma na cozinha que sequer sei se ocorrerá um dia. Já cheguei a encomendar projetos, assim, no plural. Já gastei algumas horas comparando pedras e mármores e cores e portas e vidros. Sempre postergo, penso nisso depois. Compro passagens para as férias, e a cozinha fica, acumulando desníveis. Um forno que não encaixa, uma porta que nunca fecha, mais uma mancha.
Ontem o cano desencaixou. A água invadiu o armário, escorreu por alguma fresta da madeira e encharcou o tapete sob meus pés. Suspirei, peguei o rodo. Depois de secar o armário e observar a ferrugem tatuada na prateleira, decidi me livrar de algumas panelas velhas. E fiquei me perguntando por que razão mantive por tanto tempo: uma chaleira cuja tampa não abre mais, uma leiteira sem cabo, uma frigideira das cavernas, uma panela de pressão assustadora. Quase agradeci ao cano inconveniente pelo novo arranjo, algum conforto para as peças efetivamente em uso.
Foto daqui. |
Quero tentar tratar assim minha própria história: ser paciente com os incômodos, curtir os perfumes, celebrar apesar dos desníveis. Nos momentos de angústia, tratar as manchas e jogar fora o que não me serve. Olhar para as lembranças do que fiz como aquilo que realmente são: escolhas. Como aqueles ímãs, ao invés de um piso brilhante. E cuidar do principal, tratando com cuidado daquilo que de fato me alimenta.
Há
tempos planejo reformas que sequer sei se ocorrerão
um dia. Coleciono projetos. A
vida segue, acumulando delícias. Se um dia uma grande reforma vier, que o principal se mantenha: alimentos feitos com afeto.
6 comentários:
que delícia de cozinha e de texto, Rita. Sábio....
Obrigada, flor. Espero você prum café.
fiquei dividida: provar as delícias na cozinha novamente ou te encontrar nas delícias das andanças, numa esquina qualquer. só sei que quero.
Não se sinta só. Comecei uma mini-reforma em casa ano passado, e então me livrei do sofá e da mesa de jantar para serem substituídos... e desde então (1 ano), a minha "é uma casa muito engraçada", não tem mesa e não tem sofá. Quero muito comprá-los, mas também tenho preferido usar o dinheiro para viajar, e o tempo para sonhar acordada rsrs
(nem me pergunte como estamos nos virando sem mesa e sofá)
Quando/se um dia vier, que traga bons momentos em família.
Muito bom o texto, carregado de emoção.
Que texto delicioso, daqueles que dá vontade de ler sem parar. Gostei muito :)
Sílvia
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