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Yours, very faithfully. |
"rogo-te que não leias minhas cartas para ninguém, pois assim posso imaginar-me sentado ao lado de minha querida futura esposa, & diante dela, não me importam as tolices que eu possa dizer"
Esse trecho salta da página 115 da edição traduzida d'As Cartas de Charles Darwin*, dando uma reforçada naquela sensação bisbilhoteira que a gente sente (a gente = eu) quando lê biografias epistolares. Cento e setenta e oito anos e tantos fósseis descobertos depois, vamos supor que ele nem se importaria, right? Ok.
A primeira carta nessa seleção foi escrita pelo Darwin de 16 anos, aluno de medicina da Universidade de Edimburgo, curso que logo trocaria por um bacharelado em Cambridge. Seu pai esperava que ele concluísse os estudos necessários para se tornar um clérigo, mas aos 22 anos Darwin conseguiu apoio paterno para embarcar no Beagle - e deu início à odisseia científica que mudaria os rumos de sua vida e, mais tarde, lançaria as bases da biologia evolutiva.
As cartas escritas durante a viagem do Beagle formam um trecho pequeno do livro, cerca de 50 páginas. A primeira e a última cartas dessa época foram enviadas de "Bahia ou S. Salvador" (o Beagle passou por nossa costa na ida e na volta). Não há cartas enviadas de Galápagos, mas sobram relatos sobre enjoos (tadinho). Creio que o Diário escrito a bordo seja bem mais rico e interessante do que as cartas.
A viagem do Beagle, contudo, alimenta boa parte do conteúdo das cartas escritas ao longo das décadas seguintes - e aí está a diversão para leitores interessados no Darwin cientista. Há também várias sobre assuntos mais íntimos, problemas de saúde seus e de familiares, por exemplo. Mas é do processo de descobertas científicas de Darwin que tratam muitas das linhas mais interessantes da seleção: a rotina de estudos, os critérios, as minúcias, o avanço necessariamente lento. Lento e cuidadoso, como que ciente da grandeza do desenho que estava fazendo. Me emocionam, especialmente, a paciência e o empenho em coletar coletar coletar. Observar a natureza, decifrá-la, coçar a cabeça diante dos enigmas, consultar outros especialistas, confrontar dados incansavelmente: a beleza do estudo, da busca. Me encanta a honestidade intelectual das perguntas: por quê, cargas d'água? como? E, claro, tão bom dar uma espiadela no que deve ter sido um entusiasmo quase sufocante:
"... e nunca parei de colecionar dados. Por fim, surgiram alguns raios de luz, e estou quase convencido (contrariando a opinião com que comecei) de que as espécies não são (isto é como confessar um assassinato) imutáveis." (1844)
As cartas de Darwin nos fazem humildes. Ou deveriam. Uma vida inteira dedicada a observar a natureza e a tentar desvendar alguns de seus mecanismos mais extraordinários. Mas observar de verdade, olhando desarmado dentro dos olhos do mundo, com um único objetivo: entender. Um homem de saúde frágil, com uma mente brilhante e uma coragem imensa. É verdade que não precisávamos de sua correspondência; ele viveu o suficiente para publicar e revisar várias edições de seu livro revolucionário. Publicou vários outros escritos, temos seu Diário do Beagle. Darwin teve voz ativa na comunidade científica, foi enterrado com honras de Estado, seu legado estaria a salvo independente das cartas que hoje bisbilhotamos. Mesmo assim, fica aquele gostinho de ter chegado um pouco mais perto, de ter passeado por aquela sala cheia de coleções de besouros, de ter navegado um pedacinho assim de mar com ele. De ter também se sentido minúsculo diante da "floresta gloriosa". Aí é só forçar um pouquinho mais e posso me ver sussurrando sobre seus ombros enquanto ele disseca mais um besouro: thank you, Sir.
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* As Cartas de Charles Darwin - Uma Seleta 1825-1859, Editora UNESP / Cambridge University Press, Tradução Vera Ribeiro.