Não é bom quando amigos percebem nossos vacilos e gentilmente nos dão aquele empurrãozinho? Algumas vezes me peguei na livraria lendo a contracapa de Cartas a Théo. Nunca comprei, sempre adiei para "depois". Uma amiga percebeu o vacilo e colocou em minhas mãos um exemplar: "leia". Este post é um agradecimento, mais um.

É bom e fácil, penso eu, gostar das pinturas de Van Gogh, sorrir diante do laranja vibrante, em pinceladas que, de perto, quando quase encostamos nossos narizes na obra, são pouco mais que o resultado de golpes rápidos sobre a tela, mas que nos calam como mágica quando damos dois passos para trás e percebemos a dança de cores. É bom. É quase automático, talvez. Olhar para essas mesmas pinturas depois de conhecer suas cartas será sempre, acredito, uma experiência tão mais intensa quanto foi envolvente ler seus relatos de artista solitário. Cartas a Théo (Ed. L&PM, tradução de Pierre Ruprecht) tem muito mais do que eu supunha, minha amiga estava certa. Reencontrei o senhor da amendoeira, dos mil amarelos de trigo, dos girassóis e ciprestes, do olhar de dor. Descobri o homem para quem a arte era uma espécie de comunhão com a natureza e com a humanidade. Descobri a profunda solidão de alguém cuja sensibilidade foi sua própria desgraça.
Sabe-se que apenas um quadro de Van Gogh foi vendido enquanto o artista era vivo; o que eu não sabia era que, se pudesse, ele não venderia mesmo nenhum - mesmerizado diante das cores, rejeitava ideais de fama e prestígio, ainda que torcesse pelo reconhecimento de seus contemporâneos impressionistas. Mas era preciso vender, pobre coitado, e assim pagar o generoso auxílio de Théo, evitar os forçados jejuns, comprar telas e cores - para ao menos pintar sem fome. E, acima de tudo, era preciso conviver com a própria loucura. Como alguém que pertence a dois mundos, Van Gogh via mais de si mesmo e da natureza ao seu redor - e isso nem sempre era bom. E em meio ao tormento, deixou-nos centenas de janelas através das quais podemos tentar compartilhar de seu olhar, de sua percepção do que é o mundo, de onde mora a beleza, do que encanta e acolhe e nos torna possíveis, apesar de nossa inexorável solidão.
Que 2016 nos venha como seu Van Gogh favorito, colorido e vibrante, ou suave e acolhedor, ou ainda alegre e quase dançante. Ou tudo junto, na sua medida, adicionado de suas próprias cores. Que os meses nos brindem com mais arte no mundo, menos ódio e egoísmo - "não há nada de mais realmente artístico que amar as pessoas" (Van Gogh, setembro de 1888). - Feliz ano novo, pessoas queridas!
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"Seja na figura, seja na paisagem, eu gostaria de exprimir não algo sentimentalmente melancólico, mas uma profunda dor. Em suma, quero chegar ao ponto em que digam de minha obra: este homem sente profundamente, e este homem sente delicadamente." - 1882
"Continuo sempre à procura do azul." - 1883
"...um das coisas mais belas dos pintores de nosso século foi pintar a obscuridade, que apesar de tudo é cor" - 1884-1885
"...prefiro pintar os olhos dos homens, mais que as catedrais..."
"Estou num furor de trabalho, já que as árvores estão em flor e que eu gostaria de fazer um pomar da Provence de uma alegria monstruosa.' - 1888
"Como é belo o amarelo!" - 1888
"E num quadro eu gostaria de dizer algo consolador como uma música" - 1888
(1889 - único quadro vendido em vida)
"Dizem que na pintura não se deve procurar nada, nem nada esperar, além de um bom quadro e uma boa conversa e um bom jantar como felicidade máxima..." - maio de 1890, dois meses antes de tirar a própria vida.
(maio 1890)
(junho 1890, um mês antes de morrer)
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"E eu me deixarei ir não sem reflexão, mas sem insistir em lamentar coisas que poderiam ter acontecido."