A casa velha, alugada, ficou em minha memória de forma meio turva porque confundo um pouco sua arquitetura com a da casa vizinha, habitada por uma velha amiga de minha mãe que eu visitava com frequência. De vez em quando penso na sala de TV e aí me dou conta de que aquela não era a nossa TV, era a da vizinha. Eu me lembro da sala da frente apinhada de estantes de metal cheias de livro e papel, muito papel; lembro do pequeno terraço da frente, onde um dia encontrei uma cobra preta que por pouco não peguei, pensando tratar-se de uma pequena bengala; lembro do quintal que um dia vi cheio de pintinhos amarelos que corriam desengonçadamente e me assustavam um pouco - e de como fiquei triste quando a chuva forte matou todos eles. E me lembro de meu aniversário de cinco anos, com chapéu de papel e os amigos uniformizados trazidos da escola pela professora.
No dia da mudança Mimi não foi. Alguém o colocou em uma caixa de papelão e até o levou para a casa nova. Não sei se por descuido - e a quem culpar, com tanta coisa por fazer? - ou por ser inevitável, o fato é que me disseram que "o gato é da casa, não da pessoa" e precisei me conformar. Ainda o vimos pela rua, alguém disse tê-lo visto nos telhados por ali, magro e sem rumo. Não sei. Ganhamos casa nova, mas perdi o gato.
Naquela época, Severino, um velho irmão da minha avó materna, ainda morava conosco. Minha mãe assumira seus cuidados quando ainda era solteira, aos 26 anos, após a morte de minha avó. Severino tinha saúde frágil e em seus últimos anos de vida era visto como um "esclerosado". Talvez hoje fosse diagnosticado como portador de Alzheimer, nunca vou saber, é só uma suspeita. O fato é que Severino também se perdeu várias vezes. Demorou muito tempo até que ele se acostumasse a ir à barbearia e voltar para a casa nova. Severino, como Mimi, parecia querer a velha casa da parte mais baixa da rua. Passamos a esperá-lo na porta e a trazê-lo para casa até que o novo hábito substituiu o velho. Dos tempos de Severino na casa nova, lembro-me especialmente de sua mania de limpeza que o levava a catar incessantemente as folhas secas que caíam da goiabeira. Quando ele morreu do coração, nossa casa "nova" estava completamente revirada por uma de suas muitas reformas e aquilo tudo certamente o incomodava mais do que posso suspeitar. Quando as primeiras visitas chegaram para velar o corpo, havia chuva e goteiras pela sala, faltava luz. Os quadros também são avulsos aqui e eu não seria capaz de tecer uma teia muito fiel daqueles dias. Mas eu me lembro da sensação de tempo passando e de como minha mãe se emocionou no enterro lembrando-se de minha avó. Também me lembro de não ter entendido muito bem o que uma coisa tinha a ver com a outra, tão mergulhada na infância que eu estava.
Quando revisito essas lembranças fico pensando em como tudo parece ter acontecido em outra vida, com outra menina. No entanto, era eu, eu já me sentia eu. Os sustos, as angústias, as perguntas, tudo já me rondava naquela época empoeirada. Penso um pouco mais e vejo que de certa forma eu era mais triste, mais saudosa. Parece absurdo, mas é como se naquela época um pedacinho de mim sentisse saudade do futuro que eu teria depois. Cabiam muitos sonhos e caminhos indefinidos nas minhas brincadeiras e, sem suspeitar que o fazia, eu ensaiava caminhadas que de fato experimentei depois. Hoje penso que muitas escolhas que fiz começaram naquelas casas de minha infância, em meio a planos mais imediatos, como a melhor posição do sofá ou o posicionamento da porta nova da cozinha. Com o passar dos anos, minha mãe fez todas as reformas que quis, escolheu quadros e vasos, construiu quarto para os netos. Foi brincando na sala, iluminada pelos grandes janelões que ainda hoje estão lá, que exercitei essa mania de olhar pela janela e de relembrar que a rua é mais comprida do que a vista do terraço permite perceber. Foi naquelas casas gerenciadas pela minha mãe que comecei minhas construções internas, minhas eternas reformas.
Houve vários endereços depois, outros gatos também. Mas nenhum dos apartamentos da época da faculdade, ou a casa inglesa que me acolheu naquele inverno afoito, ou as primeiras moradas em Santa Catarina, nenhuma dessas moradas surge em primeiro plano quando olho para dentro. (A casa onde moro agora é outra história.)
A poeira em minha alma é constante. Vivo revisitando gavetas velhas e testando novas arrumações. E acho graça como o tempo tem seus poderes. Porque eu sei o que faltava, e sei que não era pouco; mas as camadas de poeira são tão bonitas, às vezes. Como quando a luz do sol invade a sala e torna coloridos os pequenos grãos de pó. Igualzinho.
Quando revisito essas lembranças fico pensando em como tudo parece ter acontecido em outra vida, com outra menina. No entanto, era eu, eu já me sentia eu. Os sustos, as angústias, as perguntas, tudo já me rondava naquela época empoeirada. Penso um pouco mais e vejo que de certa forma eu era mais triste, mais saudosa. Parece absurdo, mas é como se naquela época um pedacinho de mim sentisse saudade do futuro que eu teria depois. Cabiam muitos sonhos e caminhos indefinidos nas minhas brincadeiras e, sem suspeitar que o fazia, eu ensaiava caminhadas que de fato experimentei depois. Hoje penso que muitas escolhas que fiz começaram naquelas casas de minha infância, em meio a planos mais imediatos, como a melhor posição do sofá ou o posicionamento da porta nova da cozinha. Com o passar dos anos, minha mãe fez todas as reformas que quis, escolheu quadros e vasos, construiu quarto para os netos. Foi brincando na sala, iluminada pelos grandes janelões que ainda hoje estão lá, que exercitei essa mania de olhar pela janela e de relembrar que a rua é mais comprida do que a vista do terraço permite perceber. Foi naquelas casas gerenciadas pela minha mãe que comecei minhas construções internas, minhas eternas reformas.
Houve vários endereços depois, outros gatos também. Mas nenhum dos apartamentos da época da faculdade, ou a casa inglesa que me acolheu naquele inverno afoito, ou as primeiras moradas em Santa Catarina, nenhuma dessas moradas surge em primeiro plano quando olho para dentro. (A casa onde moro agora é outra história.)
A poeira em minha alma é constante. Vivo revisitando gavetas velhas e testando novas arrumações. E acho graça como o tempo tem seus poderes. Porque eu sei o que faltava, e sei que não era pouco; mas as camadas de poeira são tão bonitas, às vezes. Como quando a luz do sol invade a sala e torna coloridos os pequenos grãos de pó. Igualzinho.
9 comentários:
Talvez por isso eu goste tanto de tirar a poeira mais do que deixá-la intocada acumulando. Tirar a poeira, para mim, é sinônimo de organização de coisas e bagunça de lembranças. Por isso minhas faxinas demoram tanto...
Nostalgia... é sinal que o tempo não pára! beijinhos e tudo de bom Rita!
ADORO tudo o que escreve!!
eu li ontem e ainda não consigo comentar. estou aqui a tentar lembrar-me. ou a esquecer. não decidi. beijo.
"A poeira em minha alma é constante". Acho que foi essa frase que me faltou hoje, quando minha Eliana comentou sobre o aparente paradoxo que lhe salta aos olhos, ao observar minha incontida alegria por estar aposentado da maneira exata à planejada, em contraponto a algo em meu olhar que denuncia que essa alegria não é absoluta, não me preenche.
Acho que já falei alhures sobre a falta que seus escritos me fizeram em meu passado recente de estranho recolhimento. Não gosto do termo poeta como substantivo comum de dois gêneros. Você é poetisa, das boas, não precisa de rimas para capturar e escancarar o lirismo das (às vezes) pequenas coisas da vida e as verdades da alma que se manifestam em saudade ou medo.
Adoro esta estrada, qualquer que seja a cor.
Obrigada por lerem meus devaneios saudosos, queridos. E obrigada pelas palavras generosas. Demais.
Beijos,
Rita
Lindo o teu texto. Venho sempre aqui e cada vez admiro mais a tua sensibilidade para as coisas do dia a dia e para os pequenos cantos escondidos da memória. Normalmente leio e fico quietinha aqui no meu cafofo, mas hoje tive que sair para te dizer o quanto é bom ler suas histórias. Abraço
Soemis Liebel
PS: Posso indicar teu texto no Facebook?
Claro, Soemis, fique à vontade. Fico feliz que tenha gostado. Muito obrigada pela companhia e pelo carinho. :-)
Abraço,
Rita
A Soemis foi mais delicada: perguntou primeiro. Eu já mencionei seu blog por lá... Tô adorando tudo! :-)
Obrigada, Rosa! Bem vinda ao blog, boa caminhada. ;-)
Postar um comentário