Ah, vocês precisavam estar lá para ver a cena. A tão esperada visita da médica aconteceu bem na hora em que o moço da fisioterapia respiratória tinha colocado em minha mãe uma daquelas máscaras que deixam a pessoa com jeitão de personagem de ficção científica, sabe aquela com um focinho bem grande como se a pessoa estivesse se protegendo de um ataque com armas químicas? Então, uma daquelas. E é claro que a minha mãe queria desfilar o rosário de argumentos que ela tinha em mente para convencer a médica de que ela já está boa (os argumentos cientificamente embasados eram "a comida daqui é horrível", "eu vou embora de qualquer jeito" e "minha melhora foi espetacular"). Tadinha, ela não podia acreditar que a médica estava bem ali na frente dela, mas ela não podia argumentar nada de nada, no meio daquele fumacê todo. Nem ver a médica ela podia, já que também usava uma máscara nos olhos para protegê-los da nuvem que sai da máscara de filme.
Então eu servi de porta-voz. Ah, doutora, ela realmente passou a noite superbem, a respiração isso, o peito aquilo, a voz assim, a resistência assado, e por aí vai. Mas não seria minha mãe se ela se contentasse com o papel de plateia, que ela nasceu para protagonizar, já falei? Então vimos a minha mãe "conversar" através da máscara, tentando compensar a absoluta impossibilidade de ser entendida, quiçá ouvida, com gestos amplos das mãos; bastou-me uma olhada de rabo de olho para vê-la começar a corar (as orelhas) de ansiedade e pensei "isso, mãe, estraga tudo, dispara o coração bem na hora do exame da médica, aff!". A médica, segurando o riso diante da minha mãe que parecia um exterminador de mosquito, foi quem tratou de contê-la: "pode ficar calma, sua filha já está explicando".
Minha mãe continuou ligadíssima na conversa, juro que vi suas orelhas crescendo ligeiramente na tentativa de fisgar cada palavrinha da médica. Por fim, houve o exame e o aval para voltarmos, não sem condições que incluem um retorno ao cardiologista dentro de dez dias, um coquetel de remédios e contato imediato em caso de qualquer alteração indesejada. Satisfeita, a exterminadora de mosquitos ergueu os polegares em sinal de legal e a médica saiu sorrindo.
E nós voltamos para casa, êêêêê!
Em casa, comemos. Como duas esfomeadas, saciamos nossos caprichos, ela com sua vitamina de frutas, eu com minha canjica amarelinha temperada com canela, aaaaiiiiiiiiii, delícia. E seguimos nossas vidinhas. A saúde de minha mãe é frágil, inspira cuidados constantes. Mas ela é guerreira e não podemos evitar a sensação de batalha ganha com louvor. Quando cheguei aqui na semana passada, minha mãe mal conseguia falar. Hoje deu ordens a mim, à minha tia, à enfermeira, ao meu irmão, ao motorista e à médica. Quem passar desprevenido na calçada aqui de casa ganha uma tarefa. Mas deixa, pófalar, mãe.
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Antes de subir pro meu quarto, dei-lhe boa noite.
- Parabéns, mãe. Guerreira demais, viu?
- Obrigada, minha filha. Obrigada.
Calei-me como quem aceita o agradecimento, sabendo que, no fundo, não posso ficar com ele. Nos últimos dias, o que fiz foi torcer muito, só. Em pensamento, transfiro o "obrigada" de minha mãe para o casal de enfermeiros da ambulância (vocês nem imaginam o nível excepcional de tratamento humanizado que recebemos), para a médica rápida, segura e eficiente, para todas as enfermeiras do hospital, para o moço da máscara de filme, meus familiares, meus amigos, meus leitores que seguraram minha mão de vários lugares do mundo! --------------------->Obrigada.
"É preciso acreditar que o mundo está cheio de amigos" - Walter Salles
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- Alô? Filhote?!! Amanhã eu chego aí!
- Mamãe, escuta: eu te amo e você não está saindo do meu coração.
- ...
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- Alô? Minha pequena!!! Que saudade!! Ó, a mamãe já vai voltar pra casa, viu?
- Mamãããe, o mano me chamou de pum!
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Odisseus, obrigada. Chego já, tá? Te amo mais.